Artigo no Jornal O Estado de São Paulo – De Ruy Marcelo, procurador do MP de Contas no Amazonas. Mestre em Direito Ambiental pela UEA
Ganharam destaque no País os recentes episódios de controle judicial de despesas com elevados cachês de artistas na produção de festejos municipais. O Presidente do STJ, Ministro Humberto Martins, instado pelo Ministério Público, por cautela, proibiu certas prefeituras de realizarem gastos do gênero, invocando a ameaça de grave lesão ao interesse público e a incoerência desses dispêndios em face das limitadas finanças e o estado de precariedade do custeio e oferta de serviços públicos essenciais aos munícipes.
A medida judicial é elogiável, a repercussão é compreensível, e se cogita até em CPI sobre o assunto em meio a pressentimentos e arguições de suspeitas de corrupção nas tais contratações artísticas. Nesse bambaré que, de fato, merece a mais ampla e rigorosa investigação – tanto mais por estarmos em ano eleitoral – dois aspectos são dignos de resenha, a bem do amadurecimento da nossa democracia republicana: primeiro, o caráter jurídico e não meramente político da definição do gasto público; segundo, a consagração do conceito de legitimidade das despesas públicas, como peneira de controle jurídico das finanças públicas.
No tocante ao primeiro aspecto, da juridicização das finanças públicas, corrige-se um dogma indesejável: o de reputar juridicamente indiscutível e insindicável o mérito da partilha de recursos, uma vez aprovada a lei orçamentária. Ao atribuir valor absoluto ao princípio constitucional da separação de poderes, o Judiciário e demais operadores do direito tendiam a considerar legítima, até bem pouco tempo, toda e qualquer despesa, pelo só fato de estar prevista na lei orçamentária (e nas emendas parlamentares), enquanto produto das opções discricionárias dos Poderes Executivo e Legislativo no devido processo de discussão e aprovação do orçamento público. O efeito disso era a diminuição sensível das possibilidades de aperfeiçoamento da qualidade dos gastos públicos.
Virando a página, notabiliza-se, atualmente, com a inestimável contribuição da doutrina de Direito Constitucional e da jurisprudência de nossa Suprema Corte e do Superior Tribunal de Justiça, a outra visão, nitidamente aperfeiçoada, no sentido de que, embora com esse pedigree democrático, o orçamento público deve se submeter à função estatal de controle, inerente ao sistema de freios e contrapesos de limitação do poder. Seja porque, enquanto lei, o seu conteúdo e suas disposições, tanto na fase de formulação em abstrato como na de execução em concreto, subordinam-se a outras normas em vigor, especialmente as constitucionais, que ditam prioridades de realizações e de investimentos públicos; seja porque os poderes Executivo e Legislativo, compostos por homens, falíveis, podem errar e abusar do poder na gestão das finanças públicas.
Com efeito, é sensato e prudente que assim seja. A falta, insuficiência ou desperdício de verba pública indicam fatos gravíssimos na vida republicana, tais como a falta de alcance dos fins e ineficiência do Estado, em prejuízo ao atendimento das necessidades básicas do povo, com grave ameaça e lesão a direitos individuais e coletivos de primeira grandeza. Portanto, o regime de controle amplo para auscultar tais mazelas de gestão financeira é da mais alta significação jurídica, técnica, política e ética.
Essa ordem de ideias não é inconciliável com a magnitude dos princípios da legalidade e da separação de poderes no Estado de Direito. Nem oblivia, por certo, que a lei orçamentária, como bem sintetiza Carlos Ayres Britto, é a mais importante norma (infraconstitucional) aos fins do Estado e à realização do interesse social. Com efeito, se toda prestação do Estado tem seu custo e se finitos são os recursos, a previsão de custeio dos vários direitos e de seus correlatos serviços públicos deve ser por ato normativo politicamente qualificado, que promova o fatiamento do bolo financeiro segundo a avaliação técnica e discricionária da medida da necessidade e da essencialidade de cada ação e investimento em dado contexto e circunstâncias locais e regionais. Todavia, o que já não se tolera é que, por falta de controle, a lei orçamentária, mal feita ou mal executada, subverta e boicote os deveres prestacionais do Estado, constitucionalmente qualificados, em favor do financiamento de objetos de interesse secundário, eleitoreiros, improvisados, de utilidade duvidosa, de antieconomicidade evidente e de retorno público improvável.
Quanto à função de controle de ilegitimidade da despesa pública, desde 1988 a temos expressa na redação do artigo 70 da Constituição Brasileira, como própria do sistema de controle financeiro do Estado a cargo das controladorias, dos legislativos e dos tribunais de contas (controle interno e controle externo de fiscalização contábil, financeira e orçamentária). Trata-se de conceito normativo fundamental à garantia de eficiência da gestão financeira estatal e ao controle orçamentário para além do exame da conformidade legal.
Com esse conceito, não restam dúvidas: além de legalmente prevista, a despesa pública deve se revelar, em cada caso, meio eficaz, econômico, oportuno, proporcional, ético, eficiente e sustentável de realizar os valores, os direitos, os objetivos e os princípios definidos como prioritários e essenciais na agenda estatal. Perante as cortes de contas, significa que, identificado o caso de ilegitimidade da despesa, o agente ordenador deverá ter a sua responsabilidade definida, com penalidades especiais, inclusive, a condenação a ressarcir o erário.
Aliás, não é de hoje que essa espécie de revisão é praticada no âmbito dos tribunais de contas. Exemplo disso é atuação do Tribunal de Contas do Estado do Amazonas. Dentre outros casos, no ano de 2016, no auge da crise econômica de então, instado pelo Ministério Público de Contas, o órgão de controle adotou a Resolução n. 08/2016 – TCE/AM, que, com ineditismo, alertou preventivamente todos os prefeitos, na forma da LRF, quanto à responsabilidade fiscal de gastos elevados com festejos em meio à crise financeira.
Na realidade amazônica, integrada em sua maioria por municípios de parcas finanças e diminutos índices de desenvolvimento humano, essa dimensão de controle se mostra imprescindível à garantia de bom senso e eficiência na aplicação dos recursos públicos. Aqui, ali e alhures, não se pode festejar os lixões, a miséria, a falta de tratamento de esgotos, a falta e precariedade de unidades de saúde, o retrocesso nas metas do plano de educação, deficiência de fiscalização florestal e a invigilância de nossos rios e fronteiras, que padecem da violência que retira a segurança e a vida de abnegados guardiões da Amazônia e vilipendia nossa sociobiodiversidade, deixando rastro sangrento de subjugação e destruição.
Por fim, não menos importante é frisar que todo cidadão tem a prerrogativa de representar aos tribunais de contas e de ajuizar ação popular com o fito de contestar despesas públicas ilegítimas. Como diz a canção, quem sabe faz a hora e não espera acontecer. Mãos, pois, à obra!
*Ruy Marcelo, procurador do MP de Contas no Amazonas. Mestre em Direito Ambiental pela UEA
Link original de publicação do artigo: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/os-caches-artisticos-e-a-legitimidade-das-despesas-publicas/