Por Júlio Marcelo de Oliveira Apesar de toda a visibilidade que a rejeição das contas da Presidente da República em 2015 e o subsequente processo de impeachment trouxeram para o Ministério Público de Contas, pouca gente o conhece bem, mesmo no universo dos que trabalham com o direito.
Muitos perguntam se ele faz parte do Ministério Público, como se dá o concurso de ingresso, quem escolhe seu procurador-geral.
O Ministério Público de Contas é órgão de estatura constitucional, previsto no artigo 130 da Constituição Federal, inserido na mesma seção que trata do Ministério Público judicial, com o mesmo múnus público de velar pela ordem jurídica, pelo regime democrático e pelos interesses sociais e individuais indisponíveis, com os mesmos direitos, vedações e formas de investidura.
O concurso para ingresso na carreira, portanto, precisa seguir os mesmos requisitos dos concursos para o MP judicial.
A chefia da carreira em cada ente da federação segue o mesmo regramento estabelecido para a chefia das carreiras do MP judicial.
Quanto a sua natureza jurídica, o que distingue o Ministério Público de Contas do Ministério Público judicial é acidental, não é essencial, é apenas o órgão perante o qual funciona.
Enquanto um funciona perante o Poder Judiciário, o outro funciona perante os tribunais de contas, que poderiam até fazer parte do Poder Judiciário, se o constituinte assim quisesse.
Aliás, em Portugal, o tribunal de contas integra o Poder Judiciário e seus membros são todos oriundos da carreira da magistratura.
Quem sabe essa mudança não possa ser debatida e feita no âmbito das discussões da PEC 329/2013, em torno da necessária e inadiável reforma dos tribunais de contas? Ressalte-se aqui que o Ministério Público de Contas não se confunde com os tribunais de contas, assim como o Ministério Público judicial não se confunde com o Poder Judiciário.
Trata-se de órgãos distintos.
O Ministério Público de Contas atua junto aos tribunais de contas, perante eles, não dentro deles nem para eles.
Em que pese a verdadeira e ontológica identidade existente entre o Ministério Público judicial e o Ministério Público de Contas, dois tratamentos diametralmente opostos lhe foram conferidos no plano concreto da experiência constitucional brasileira.
Olhando em retrospectiva os últimos 28 anos, podemos constatar que tivemos uma extraordinária experiência constitucional no que tange ao Ministério Público.
Tivemos todos a oportunidade de observar em concreto o que acontece na prática com essa instituição quando ela é dotada de autonomia e o que ocorre quando lhe é negado esse atributo.
Não sei se outro país do mundo teve experimento político-institucional tão revelador como este.
Para além de argumentações teóricas e retóricas, basta verificarmos empiricamente e compararmos o que aconteceu com o Ministério Público judicial depois que lhe foi concedida explicitamente sua autonomia pela Carta de 1988 e o que se passou com o Ministério Público de Contas, considerado em 1993, na ADI 789, como inserido na “intimidade estrutural” dos tribunais de contas, sem autonomia administrativa, orçamentária e financeira, segundo essa concepção.
Enquanto o Ministério Público judicial se desenvolveu a olhos vistos, se profissionalizando, se equipando, adquirindo os meios necessários para atingir níveis elevados de resultados positivos em sua atuação perante a sociedade, conduzindo grandes operações com vigor e independência como a “lava jato”, o MP de Contas passou a maior parte desse mesmo período (quase três décadas!) lutando nos (ou mesmo contra os) tribunais de contas simplesmente para existir (no estado de São Paulo, o MP de Contas tem apenas 5 anos!), para ter condições materiais mínimas de funcionamento e para ter as prerrogativas de independência funcional de seus membros reconhecidas e respeitadas.
Ainda hoje, o Tribunal de Contas do Município de São Paulo funciona de maneira irregular e inconstitucional sem a presença do Ministério Público de Contas, pecando a Câmara de Vereadores de São Paulo por grave omissão ao não instituir o órgão constitucionalmente previsto.
Essa questão foi levada ao STF pela Associação Nacional do Ministério Público de Contas (Ampcon) e aguarda julgamento, o que não impede que a nova legislatura da Câmara de Vereadores de São Paulo a possa corrigir desde logo, se assim desejar.
Quanto desperdício de energia! Quanto tempo e quantas oportunidades de atuação em prol da sociedade foram perdidas nesse período? Quão melhor estaria o controle externo brasileiro com a atuação plenamente livre do MP de Contas? Sim, porque empiricamente se observa que onde o MP de Contas pode atuar com mais desenvoltura, melhores são os resultados dos tribunais de contas.
Não somos a salvação do mundo nem donos da verdade, mas temos plena consciência de que somamos, de que agregamos valor, de que contribuímos para qualificar as discussões nos tribunais de contas.
O modelo do MP de Contas sem autonomia está superado, é anacrônico e inconstitucional, equivale ao do MP judicial existente antes da Constituição de 1988, então dependente ora do Poder Judiciário, ora do Poder Executivo, para poder funcionar.
Felizmente, há ações no Supremo Tribunal Federal que permitirão à excelsa Corte revisitar esse tema e que podem resultar em importante evolução dessa primeira concepção de intimidade estrutural, que tanto mal tem feito ao MP de Contas e ao controle externo brasileiro hoje.
Certamente o STF decidiu aquele leading case mirando os dados da realidade daquela época, recém vigente nossa Carta de 1988.
Confiamos que a experiência histórica desde então – o observar os efeitos da autonomia sobre o Ministério Público judicial e o da falta de autonomia sobre o MP de Contas – permitirá a nossa Corte Constitucional alcançar uma nova compreensão sobre o funcionamento adequado do MP de Contas perante os tribunais de contas.
O modelo construído historicamente no Pará, em exame pelo STF, é o nosso paradigma de modelo ideal.
Um MP de Contas enxuto, ágil, com especialização em contas públicas, atuando em perfeita harmonia, de forma complementar e sinérgica, tanto com os Tribunais de Contas como com o MP judicial, é o que a experiência de mais de cinquenta anos do estado do Pará nos mostra ser não só factível, como ideal.
No plano do livre e pleno funcionamento do MP de Contas, além da autonomia administrativa, orçamentária e financeira, há que se assegurar sua atuação em todos os processos sujeitos à deliberação dos tribunais de contas, independentemente de solicitação dos ministros ou conselheiros relatores.
Mesmo no TCU, corretamente considerado o melhor dos tribunais de contas, a maior parte dos relevantes processos de auditoria, com suas múltiplas variantes, ainda não é enviada para exame e opinião do MP de Contas.
No mais das vezes, o MP de Contas só tem ciência da existência do processo quando ele já se encontra pautado para julgamento! Evidente que isso traz embaraços para o funcionamento do MP de Contas e do controle externo! Perdemos todos com isso.
O MP de Contas, por não realizar plenamente sua missão constitucional; os tribunais de contas, por decidirem com menos elementos e fundamentos, e a sociedade, por pagar caro – são mais de R$ 10 bilhões por ano – para manter um sistema que poderia e deveria funcionar de forma completa e melhor e não apenas de forma parcial.
Há uma salutar e oportuna iniciativa em curso no TCU para superação dessa dificuldade de funcionamento do MP de Contas.
Acreditamos que ela será implementada em breve.
É preciso que tal obstáculo ao funcionamento do Ministério Público de Contas seja afastado não apenas no TCU, mas também em todos os tribunais de contas do país.
Não é condizente com a dignidade das funções do Ministério Público de Contas que os tribunais de contas disponham de sua atuação como se se tratasse de uma assessoria jurídica especializada, ora solicitando o pronunciamento do órgão ministerial, ora o dispensando.
Isso viola a independência funcional do MP de Contas.
Não foi para isso que o Constituinte previu um Ministério Público especializado em contas públicas.
O que a sociedade brasileira espera do MP de Contas é que seja um órgão atuante, vibrante, com plena autonomia e independência, presente em todas as discussões levadas a efeito nos Tribunais de Contas.
Quanto antes isso ocorrer, melhor será para todo o sistema de controle externo, melhor será para a sociedade brasileira.
Site Consultor Jurídico