Os fatos revelados na operação quinto do ouro acenderam novamente o debate sobre o mau funcionamento dos tribunais de Contas do país, sua falta de fiscalização e sua forma de composição preponderantemente política.
É preciso realmente falar sobre a inadiável e já atrasada reforma dos tribunais de Contas.
Há que se tratar desse assunto com a determinação e seriedade necessárias.
Só podemos resolver os problemas que decidirmos enfrentar.
Negá-los não irá diminuí-los, tampouco resolvê-los.
O modelo desenhado na Constituição de 1988, que deu preponderância aos critérios políticos de indicação de ministros e conselheiros sobre os critérios técnicos, tem funcionado muito mal.
É preciso admitir isso.
Não se trata aqui de abordar esse tema de forma simplista, demonizando os políticos e endeusando os de formação técnica.
Longe disso.
É evidente que há políticos honestos e competentes, dignos da maior admiração, como também há técnicos ineptos, preguiçosos e desonestos.
Tratar essa questão de forma simplória em nada contribui para avançarmos na construção de um novo modelo.
Não sejamos, pois, maniqueístas, mas também não sejamos ingênuos.
Sabemos todos o momento pelo qual o país passa, testemunhamos todos como a corrupção se infiltrou em todos os Poderes, em todos os níveis.
Temos de pensar e almejar os modelos de instituições menos vulneráveis à corrupção e à ingerência política.
Aqui falamos de probabilidades, de modelos que facilitam ou que dificultam essas práticas nocivas.
O fato, largamente demonstrado empiricamente, é que a indicação política favorece a captura do órgão de controle pelos grupos políticos dominantes, sobretudo em estados em que ocorre o domínio de um mesmo grupo político por largo período de tempo ou de forma muito intensa, o que produz órgãos de controle que tendem a ser lenientes, omissos, menos rigorosos com os governantes integrantes desse grupo de domínio, sem falar no risco de corrupção sempre presente, que não pode ser ignorado ou subestimado, como revelaram as operações quinto do ouro, rodoleiros e várias outras.
Há casos de compra de vaga de conselheiro mediante pagamento para antecipação de aposentadoria de conselheiro, estando já acertado politicamente quem vai ocupar a cadeira de magistrado de contas.
Evidentemente que quem se dispõe a comprar uma vaga de conselheiro pretende obter retorno elevado para o seu indecoroso investimento.
Há exatos três anos, o Senado estava em vias de indicar para o Tribunal de Contas da União o então senador Gim Argello, não obstante fosse ele alvo de seis inquéritos no STF por crimes contra a administração pública e já estivesse condenado por improbidade administrativa em segunda instância! Havia requerimento de urgência na indicação para que ele fosse até mesmo dispensado de ser sabatinado pelo Senado, como determina a Constituição Federal.
Não fosse a enérgica reação da sociedade civil, das associações do Ministério Público de Contas e de auditores de controle externo, que chamou a atenção da mídia nacional para esse quase consumado descalabro, tal requerimento de urgência teria sido aprovado.
Foi derrotado por apenas um voto de diferença.
Na sequência, manifestou-se o TCU pela negativa de posse a Gim Argello caso seu nome fosse sabatinado e indicado pelo Senado.
Naquele mesmo dia, o então senador desistiu de sua indicação.
Hoje, cumpre pena em Curitiba, após ser processado no âmbito da operação "lava jato".
Percebam o nível de indicação que o Senado estava prestes a fazer.
É preciso conceber órgãos de controle menos vulneráveis, estruturalmente mais distantes das lutas políticas, a fim de que possam exercer com plenitude e isenção as relevantíssimas competências que a Constituição lhes reservou.
Assim como o controle atuante induz melhorias de qualidade na administração, o oposto também ocorre.
O controle leniente, omisso ou corrompido, conduz ao desrespeito com o dinheiro público.
Parece evidente a correlação entre a grave crise fiscal, financeira e moral por que passam vários estados, como o Rio de Janeiro, por exemplo, e a atuação deficiente ou simplesmente ausente dos respectivos tribunais de Contas, como visto em todos os meios de comunicação.
Não se afigura razoável que órgãos com a missão constitucional de fiscalizar a administração pública possam ter seus membros escolhidos com preponderância de critérios políticos sobre a formação e experiência técnica.
Mesmo tendo em conta que a boa experiência política pode, sim, enriquecer discussões e debates no seio dos tribunais de Contas, ela jamais pode estar dissociada da indispensável formação técnica.
Em termos de modelo de instituição, não faz sentido algum que haja membros indicados politicamente ou, se o Congresso Nacional optar por manter um modelo misto, que a quantidade deles seja superior à quantidade dos de origem técnica.
Também não é razoável que indicações políticas ocorram sem observância de critérios objetivos de qualificação dos indicados e sem respeito aos requisitos de idoneidade moral e reputação ilibada, como tem acontecido com indecente frequência.
Não é aceitável, por exemplo, que tenhamos conselheiros sem curso superior ou conselheiros que, mesmo antes de indicados, já eram processados, alguns até mesmo condenados com trânsito em julgado por improbidade administrativa.
A experiência histórica do atual modelo constitucional para os tribunais de Contas é muito ruim.
Não reconhecer isso é negar o óbvio.
Defendemos a proposta de emenda à Constituição apresentada pela Frente Parlamentar Mista de Combate à Corrupção, materializada na PEC 329/2013 na Câmara dos Deputados, que altera a forma de composição dos tribunais de Contas, pondo fim às indicações políticas, e estabelece que serão eles e seus membros fiscalizados pelo CNJ, ao passo que os membros do MP de Contas serão fiscalizados pelo CNMP, o que é plenamente coerente com os respectivos regimes jurídicos.
Essa PEC está sob a competente relatoria do deputado Alessandro Molón (Rede-RJ).
Também a PEC 40/2016, capitaneada pelo senador Ricardo Ferraço (PSDB-ES), apresenta importantes avanços quanto ao funcionamento dos tribunais de Contas, sem tratar, contudo, da questão de sua composição.
Acreditamos que a reunião e aprovação dessas propostas pelo Congresso Nacional colocará o controle externo em patamar de funcionamento à altura do que a sociedade brasileira merece, espera e exige para justificar os nada menos que R$ 10 bilhões gastos anualmente para manter esse sistema.
Conhecemos a proposta de criação de um Conselho Nacional dos Tribunais de Contas, muito diligentemente defendida pela Associação dos Membros dos Tribunais de Contas (Atricon), sob a presidência do ilustre conselheiro Valdecir Pascoal.
Embora nela vislumbremos alguns possíveis avanços relevantes para o controle externo, pensamos que os mesmos avanços poderão ser obtidos com maior segurança e menor custo para o país com a fiscalização dos tribunais de Contas e de seus membros pelo Conselho Nacional de Justiça, que evidentemente teria de ser adaptado para albergar essa nova missão.
Quanto aos procuradores de Contas, nada mais natural que sejam fiscalizados pelo Conselho Nacional do Ministério Público.
A respeito da fiscalização dos tribunais de Contas pelo CNJ, cumpre destacar o expressivo apoio público que essa iniciativa vem obtendo dos maiores juristas brasileiros, a julgar pelas declarações à imprensa do ministro aposentado do STF Carlos Mário Velloso, pelo vídeo divulgado nas redes sociais pelo jurista Márlon Reis, um dos idealizadores da Lei da Ficha Limpa, pelo depoimento entusiasmado de Roberto Livianu, presidente do Instituto Não Aceito Corrupção, também divulgado nas redes sociais, e pela Carta Aberta assinada por uma plêiade de 36 expoentes do Direito brasileiro, liderados por Celso Antônio Bandeira de Melo, Fabrício Motta, Heleno Taveira Torres, Ingo Sarlet, José Maurício Conti, Élida Graziane, Adilson Dallari, Maria Sylvia Zanella Di Pietro e outros juristas de escol.
Essa ampla aceitação e apoio do mundo acadêmico demonstra que a medida proposta não só é plenamente constitucional, como é a mais coerente com o sistema adotado pela Constituição da República, que conformou os tribunais de Contas à imagem e semelhança dos tribunais do Poder Judiciário, com as mesmas prerrogativas de autonomia administrativa, orçamentária e financeira e autogoverno e ainda dotou seus membros do mesmo regime jurídico, a Lei Orgânica da Magistratura, com exatamente todos os direitos e deveres da magistratura, faltando apenas um, o de serem fiscalizados pelo CNJ.
A PEC 329/2013 também trata da indispensável autonomia do Ministério Público de Contas, corrigindo o erro histórico do constituinte de 1988.
Falaremos sobre ela na próxima coluna.
Por ora, para os mais distraídos, registramos apenas que as leis orgânicas do Ministério Público são aplicáveis subsidiariamente aos Ministério Públicos de Contas e que seu múnus público de fiscal da lei e defensor da ordem jurídica lhes assegura o poder de requisitar informações aos órgãos jurisdicionados diretamente, sem nenhuma tutela ou ingerência dos tribunais de Contas.
Aliás, isso já foi reconhecido pelo Poder Judiciário em vários julgados.
Bizarro como alguns tribunais de Contas ainda resistem ao exercício de uma competência tão natural quanto ontológica do MP de Contas.
O debate está posto.
Deus permita que avance.
O Brasil quer mudanças, e nós vamos ajudar a construí-las.
Site Consultor Jurídico