O Novo Governo e os Desafios do Novo Marco do Saneamento
*Artigo produzido por Ruy Marcelo, Procurador de Contas do Ministério Público de Contas do Amazonas (MPC-AM)
Entres os maiores desafios que o novo Governo Federal deve enfrentar em 2023, tanto pela sua importância quanto pela sua complexidade, indubitavelmente, consiste no avanço da execução da política de saneamento básico, essencial à garantia do equilíbrio ecológico, à justiça socioambiental e à sadia qualidade de vida das presentes e futuras gerações.
Por um lado, o momento é estratégico e não permite retrocesso, insegurança jurídica, falta de governança e menosprezo aos projetos, ações, concessões e investimentos em curso. Por outro, exige a superação de sérios gargalos, inclusive mediante reavaliação de rumos, para não dar espaço à ineficiência e à corrupção.
A Política Nacional do Saneamento ganhou novo fôlego com o Novo Marco da Lei 14.026/2020, que, recentemente, completou dois anos com números positivos em marcha rumo às metas de universalização da oferta dos serviços.
A estratégia de reversão do déficit de saneamento, definida pelo Novo Marco, consiste na abertura do setor e seus ativos à lógica competitiva de mercado, mediante desestatizações e parcerias, com fixação de metas de qualidade e universalização dos serviços, uniformidade regulatória nacional, princípios de governança corporativa e de integridade socioambiental (ESG).
Para tanto, o Novo Marco incentiva o leilão de ativos de estatais ineficientes e preconiza projetos de concessão do serviço público à iniciativa privada, assegurada a uniformização regulatória pela Agência Nacional de Águas e Saneamento - ANA. Além disso, são estimulados os arranjos regionais de gestão dos serviços, em substituição às gestões municipais isoladas, de modo a contornar, por ganho de escala e subsídios cruzados, a ausência de atratividade dos pequenos municípios, cuja população não apresenta capacidade econômico-financeira para remunerar as prestadoras do serviço.
Nesses moldes, nos últimos dois anos, segundo dados da ABCON, foram realizados 17 leilões, mediante suporte técnico e financeiro da Administração Federal, via BNDES. Encontram-se pactuados investimentos superiores a R$ 50 bilhões. As cifras de arrecadação pelas outorgas são superiores a R$ 30 bilhões. Destacam-se os blocos regionais e leilões nos estados de Alagoas (74 municípios), Mato Grosso do Sul (68 municípios), Rio de Janeiro (49 municípios), Amapá (16 municípios) e Ceará (24 municípios). Há pelo menos mais 20 projetos em fase de estruturação (em RO, PB, AL, SE e RS).
Mas nem tudo se desenvolve a contento até aqui. Mais de mil municípios, em sua maioria das regiões com os piores números, do norte e nordeste, permanecem em situação irregular. Prosseguem prestando precariamente os serviços locais de abastecimento e de esgotos, por departamentos, autarquias ou empresas, deficitários e ineficientes, não sujeitos a função regulatória e a metas de qualidade e de ampliação. Esses municípios não apresentaram nem a avaliação do quadro atual nem iniciaram a adesão a bloco regional de organização dos serviços. Todavia, em benefício destes, o Decreto 11.030/2022 concede moratória, até março de 2023.
Além disso, há outras centenas de municípios a meio caminho. Aderiram voluntariamente ou foram apanhados ex lege para compor, formalmente, arranjos de regionalização, mas ainda não ultimaram os estudos de impacto e de viabilidade econômica, técnica e ambiental, nem os pertinentes planos regionais de saneamento. Também não conseguiram o concurso técnico de especialistas, seja no mercado, seja junto à Administração Federal, para iniciar essas tarefas e a subsequente modelagem de projetos de prestação dos serviços.
Nem mesmo a Administração Federal está isenta de dificuldades. A ANA se ressente da falta de ampliação de recursos para responder à novel missão regulatória e o reflexo disso é a pendência do esgotamento da agenda de formulação das normas de referência. Ademais, a comissão interministerial responsável pela condução do papel da União na execução da política pública (CIBS) também não avançou em sua pauta, o que deixa sem amparo definido, principalmente, os municípios mais carentes de recursos; fato esse que, em absoluto, deve servir de pretexto para prefeitos e governadores permanecerem inertes e omissos, enquanto se avolumam os passivos ambientais e os agravos à saúde pública.
Com efeito, por imperativo constitucional, todos os estados e municípios estão obrigados a adotar providências imediatas para se adequar ao Novo Marco, pois, viável ou não o regime de parceria empresarial, precisam atender os mandamentos legais de planejamento das operações, definição de agências e de normas regulatórias, metas de melhoria e de expansão dos serviços, combate ao desperdício, novas fontes de receita e de aproveitamento das estruturas, dentre outros; ainda que a única solução viável seja a de continuar sob o regime de prestação direta estatal e dependente de fontes públicas de financiamento.
Aliás, cumpre ao Governo Federal um olhar prioritário para identificar as regiões e comunidades locais sem atrativo econômico e lhes deferir tratamento diferenciado e equitativo de fomento, sob pena de aprofundar as desigualdades regionais e comprometer irremediavelmente as metas do ODS 6 no País.
*Ruy Marcelo é Mestre em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas