Orçamento público, para quê?

Orçamento público, para quê?

*Por Ruy Marcelo

Sobre a serventia do orçamento público, é clássica a resposta no sentido de estimar a receita e de autorizar as despesas estatais.

Esqueça isso, caro leitor. Tal definição, deteriorada e inexata, não tem colaborado, seja à compreensão dos nossos mais graves problemas estruturais, seja à definição de rumos de eficiente gestão das contas públicas.

Na raiz dessa concepção, a dogmática oitocentista do jurista alemão Paul Laband, de orçamento como lei formal flexível, meramente estimativa, recomendatória e autorizadora dos gastos públicos, que deixa o campo aberto para o governante bater o martelo quanto aos gastos estatais, sem freios nem contrapesos.

Essa visão de orçamento, soft law sujeita a toda sorte de recalcitrância a meio caminho, a gosto de governos autoritários, não se coaduna com a Constituição Brasileira, cujas normas alçam a lei orçamentária à condição de norma da mais alta significação e centralidade na disciplina do Estado. Tanto assim que descumprir o orçamento configura crime de responsabilidade e sujeita o estado à intervenção federal.

Primeiramente, no Brasil, o orçamento é prescritivo e impositivo, enquanto lei, em sentido formal e material, que determina meios financeiros e operacionais ao escopo de realizar certos fins públicos obrigatórios. Se havia alguma dúvida quanto a isso, resta superada com o § 10 do art. 165 da Constituição, introduzido pela Emenda 100/2019, redigido assim: "a administração tem o dever de executar as programações orçamentárias, adotando os meios e as medidas necessários, com o propósito de garantir a efetiva entrega de bens e serviços à sociedade."

Como a Constituição abriga todo um sistema de normas que se aplica à gestão financeira, há mais: assim como a lei orçamentária se impõe ao seu executor, sobre essa lei e seus atos executivos recaem a impositividade maior da Constituição. São imperativas e prevalentes as normas constitucionais sobre o devido processo orçamentário, sobre a vedação das despesas ilegítimas e antieconômicas, sobre a proibição do retrocesso, sobre a vinculação ao planejado, sobre a prioridade e precedência na alocação de recursos voltados à realização dos objetivos do Estado e concretização dos direitos fundamentais.

 Em vista disso, os tribunais de contas se dedicam a apurar possíveis episódios concretos de má-gestão financeira por desprezo às prioridades e comandos constitucionais. O STF passou a examinar as ações diretas de inconstitucionalidade de leis orçamentárias. No âmbito doutrinário, Élida Graziane (USP), do Ministério Público de Contas de SP, tem demonstrado, aguerrida e incansavelmente, a tese do financiamento prioritário à saúde e à educação. Marcus Abraham (UERJ) formulou, recentemente, a "teoria dos gastos fundamentais".

Não há falar, é certo, nessa direção, em exigibilidade plena ou eficácia mandatória, de extremada rigidez, vez que a lógica orçamentária, conquanto funcional e vinculante, ainda comporta certo grau de adequações, reprogramações e contingenciamentos, próprios da legitimidade democrática, do ciclo gerencial e da técnica da discricionariedade, mas nada que dê sobrevida à ideia de regra facultativa e divorciada dos mandamentos constitucionais.

Por outro lado, não menos relevante é destacar que o orçamento não se resume ao cálculo de equilíbrio entre receitas e despesas, em prol da manutenção do aparelho estatal. Para além do aspecto (importantíssimo) da responsabilidade fiscal, o regime orçamentário responde pelo planejamento público, com vistas à consecução das políticas públicas, de entrega de bens e serviços à sociedade.

Sob esse enfoque, podemos considerar o orçamento como o casamento entre a política fiscal e a administração pública, vez que tanto assinala as metas de desempenho do Estado à gestão financeira assim como imprime austeridade financeira à atividade de realização dos fins do Estado. É o princípio do orçamento-programa. Nessa esteira, o PPA é a lei que arquiteta todo o plano estratégico para realizar os objetivos e deveres estatais no intervalo de quatro anos. A seu turno, a LOA é o instrumento planificador que deve orientar a realização de um quarto do PPA em cada exercício financeiro. A LDO é o plano tático que deve assegurar a adequação entre a LOA e o PPA e a efetividade deste último em cada exercício financeiro.

Infelizmente, na prática, esse sistema não funciona. Salvo louváveis e raras exceções, o PPA não tem sido formulado com maior rigor técnico no tocante à definição de programas, ações, projetos e respectivos indicadores e metas de desempenho, às vezes, invertendo valores constitucionais. LDO não tem explicitado claramente as prioridades de gestão em cada exercício, para fazer valer e dar continuidade progressiva às metas do PPA. Falta aderência da LOA ao PPA, seguindo tendência de repetir os números do exercício passado com mero ajuste pontual (incrementalismo). Faltam as avaliações de resultado das políticas públicas, agora determinadas pela Emenda 109/2021. De resto, imensa distância entre o planejado e o executado.

Nesse cortejo de deficiências, até reformas constitucionais se tornam graves obstáculos quando em divórcio com os princípios de Direito Financeiro. Por exemplo, a Emenda 105/2019, ao criar as transferências especiais parlamentares (RP-6), conhecidas como "emendas pix", choca-se frontalmente com o princípio do orçamento-programa, pois possibilita a transferência de bilionária cifra de recursos federais desvinculada de projeto, como mero presente financeiro a um ou outro ente federado, sem real e prévia análise da qualidade do gasto que se fará por seu intermédio, o que pode aprofundar as desigualdades e a ineficiência do Estado.

*Ruy Marcelo, Procurador de Contas do Ministério Público de Contas do Amazonas (MPC-AM)